Este artigo é uma versão resumida publicada em 2018 no jornal “Os bichos”. A primeira versão, datada de 2009 e com actualizações em 2012 e 2016 (pode ler a versão longa AQUI), com o título original “potencialmente perigosos ou potencialmente em perigo”, assim como esta, reflecte totalmente a opinião do autor.
A sociedade portuguesa vive um momento importante de transição e de consciencialização em relação aos animais não humanos que coabitam connosco. Contudo, é deveras importante algumas questões começarem a aparecer no início de forma a prevenir incoerências futuras.
“Estamos a ir no caminho ideal?”, “Porque precisamos de um caminho ideal?”, “Como desenhar o caminho ideal?”, “Qual é o caminho ideal?” deveriam ser as questões iniciais antes de qualquer decisão que possa influenciar a sobrevivência das outras espécies.
A quantidade de verdades absolutas e caminhos perfeitos delineados em nome do “bem-estar animal” em nada promove uma discussão racional sobre o assunto. Pelo contrário, cria extremismo, incoerência e a necessidade humana de protagonismo e destaque social.
O assunto das raças ditas “potencialmente perigosas” é um dos (muitos) imbróglios legislativos que eu considero preocupante numa sociedade que tem uma lei que “protege” os animais.
Neste e nos próximos artigos vou apresentar alguns factos, definições, e questões que deveriam ter sido colocadas na discussão inicial deste assunto. A minha visão antrozoológica irá um pouco além deste assunto e mostrará que o mesmo talvez seja apenas mais um “detalhe” em sociedades onde os cães são objetos activos de influência social, política e financeira.
Irei colocar algumas questões populares e analisá-las em diferentes perspectivas.
A primeira questão é simples: “O que são raças potencialmente perigosas?”.
Segundo a legislação portuguesa, são considerados como cães de raça potencialmente perigosa “(…) os que, devido às características de espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possam causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais.
Entendeu-se que determinados cães, devido às suas especificidades rácicas, como o tamanho e a potência de mandíbula que os caracterizam, são desde logo animais potencialmente perigosos (…)”.
Com esta definição, poderemos implicitamente assumir que (1) as raças potencialmente perigosas têm esta definição, (2) a lista das raças publicadas seguem a definição de 1, (3) mais nenhuma raça tem esta definição segundo a lei. Logo, apenas estas raças são potencialmente perigosas. Seria interessante os intervenientes que elaboraram esta legislação terem como base inicial a complexidade da definição do comportamento agressivo, da influência da herança genética e ambiente, e pesquisarem alguns estudos que “discriminam” a agressividade por raças, o mapa genético do medo e agressividade dos cães, a influência da dimensão craniana com a pressão mandibular, e um estudo comparativo recente efectuado na Irlanda sobre incidentes com raças legisladas como “perigosas” e raças não legisladas.
Se houvesse uma revisão desta lei, poderia: (1) a mesma ser revogada, (2) serem acrescentadas mais raças à lista actual, (3) estas raças serem proibidas no território nacional, tal como acontece noutros países (Dinamarca, por exemplo), (4) ser elaborada uma lei que não fosse paradoxal com a lei de proteção animal actual e que, em vez de discriminar um grupo, promova a educação social sobre os animais de companhia.
Actualmente, existem progressos importantes de salientar na componente da ética animal. Contudo, estas mudanças estão a ser muito rápidas e de extremos, onde pensamentos “contractarianistas” (pensamento de que os animais não humanos não têm nenhum direito por não terem nenhum contrato social) inconsistentemente utilizam um discurso utilitarista (pensamento que defende que as consequências devem ser satisfatórias para ambas as partes) emocional, mas das consequências desejáveis e não das consequências reais das acções.
Entramos assim noutra discussão que se refere ao treino dos cães, em geral. A palavra “treino” em si já cria uma dicotomia sobre os limites do mesmo. Isto porque os checklists padrões para todos os cães são por si discriminatórios e não respeitam o indivíduo como tal, nem as suas especificidades/limitações.
Ainda existe uma resistência às habilidades cognitivas de algumas pessoas ao afirmarem que os treinos operacionais e / ou desportivos adequam-se à realidade dos cães e dos seus detentores na sociedade, onde para serem considerados “bons cidadãos” necessitam obrigatoriamente de efetuarem X exercícios, mesmo que na sua rotina diária os mesmos não sejam necessários. Estamos, na realidade, a gastar tempo e energia de ambas as espécies. Acima, abordo este assunto, onde demonstro que esses modelos de treino são obsoletos.
Outro assunto prende-se com a certificação de treinadores. Devido à inexistência de regulamentação ou reconhecimento da profissão, não existe uma matriz de conhecimentos básicos que todos os profissionais deveriam ter. Contudo, segundo esta legislação, apenas é necessário a aprovação num exame teórico-prático com a duração de um dia, sem qualquer formação prévia.
Deixo aqui algumas questões para reflexão:
Na componente do treino, outra das discussões referem-se aos materiais utilizados. Ainda é comum o uso de materiais cujo único objectivo é inflingir desconforto ou dor para diminuir comportamentos, com justificações moralistas na fronteira com a dissonância cognitiva. Por outro lado, várias correntes extremistas e de cariz dogmático ditas “positivas”, estão a destruir definições, conceitos e modelos científicos e a preferir criar etiquetas e slogans para fins comerciais.
Actualmente, existe uma grande corrente fashionista de protagonismo sobre o assunto, dando a ideia de que alguns indivíduos ou entidades (à procura de holofotes) “travaram” essa batalha através de posições ou discursos emocionais. Na verdade, desde 2003 que vários estudos sobre os efeitos do uso de determinados materiais no treino animal estão disponíveis e deixo-os para vossa apreciação.
Ninguém coloca em causa a eficiência dos mesmos, mas numa sociedade onde os próprios promotores políticos de leis de bem-estar animal desconhecem que esses materiais são utilizados (mesmo em cães de assistência ou terapia), é importante colocar em discussão pública estes assuntos com a finalidade de promover uma profunda reflexão e começar a dar a devida credibilidade aos verdadeiros profissionais de treino animal, que dedicaram vários anos ao estudo, pesquisa e implementação prática dos seus conhecimentos e não às péssimas assessorias de “especialistas” e outros “profissionais” limitados ao conhecimento teórico e sem conhecimento de campo ou competência para tal, que teimam em afirmar-se na área.
Neste momento, qualquer pessoa que frequente um seminário de dois ou três dias ou um curso de poucas semanas intitula-se treinador, educador, monitor, especialista, comportamentalista, etólogo, master, e outros títulos que somente ao nível académico ou em instituições internacionais são obtidos. A “ciência” é aprendida em slides, grupos sociais, conversas de corredor, artigos de blogues e da cópia grotesca de trabalhos de outros profissionais.
A completa banalização da actividade também permite que pessoas de outras áreas se destaquem na área do treino animal social, mesmo que as suas competências sejam apenas genéricas e teóricas ou de outras áreas que não são compatíveis com esta área específica. A constante procura de uma silhueta social apenas cria características narcisistas e o efeito Dunning-Kruger.
Considero esta lei um “lavar de mãos” que, devido à urgência de se apresentar algum resultado, está a basear-se nas próprias limitações de conhecimento nacional em relação a este assunto. Prova disso é, por exemplo, a afirmação na presente na legislação de que a socialização dos cães das raças perigosas ou potencialmente perigosa seja feita a partir dos 6 meses. Existe uma ausência de conhecimento científico nesta legislação e uma fraca assessoria, que preferiu condenar um grupo, não reflectindo sobre a gravidade maior deste problema.
Caberá a cada um de nós ou fechar os olhos e compactuar com a realidade actual ou colocar questões pertinentes na sociedade de forma a estimular uma discussão construtiva, que permita criar bases sólidas para trazer seriedade e profissionalismo a uma actividade menosprezada e banalizada por todos, inclusive por quem dela vive.
Contudo, não nos podemos esquecer de que ao compactuarmos e aderirmos ao silêncio, devido ao politicamente correcto, estaremos a ser cúmplices de tudo e não estaremos a defender os animais, conforme o dizemos.
Podemos escolher entre o politicamente correcto e continuarmos todos amigos a concordar com o facto de que algo está mal, ou sairmos da área de conforto com questionamentos que não vão agradar a muitos e trabalharmos inteligentemente com a “racionalidade” que tanto pregamos quando nos interessa ter atitudes antropocêntricas, devido à fraca argumentação e conhecimento científico sobre os assuntos.
Vou concluir este assunto com alguns tópicos que considero importante referir e com propostas reais com uma implementação de curto/médio prazo:
De momento, apenas se debate os “perigos” de 7 raças, quando o real perigo é o “desconhecimento social sobre os cães” misturado com a falta de civismo (desde o apanhar dejectos à delinquência de andar com cães soltos sem respeito pelos restantes cães e transeuntes) e a forma sensacionalista como a comunicação social sempre aborda este assunto. A educação terá de passar por todos.
Estes pontos focam algumas necessidades reais e urgentes. Certamente, vai chocar com lobbies e desmascarar vários indivíduos, mas conforme escrevi acima, ou continuamos no silêncio e a acreditar em mentiras confortáveis, ou realmente mostramos que o “bem-estar animal” não é uma estratégia de promoção social, financeira e política.
Não será uma só pessoa que fará a mudança necessária, mas sim o trabalho conjunto de diversos profissionais (biólogos, veterinários, treinadores de cães, sociólogos e psicólogos) nacionais e internacionais, que no ponto comum a ser encontrado entre todos, desenvolvam e apresentem em conjunto as soluções para as mudanças legislativas.
Até lá, não são determinadas raças que são potencialmente perigosas, mas sim todos os cães que estão potencialmente em perigo pelo egocentrismo, cinismo e narcisismo humano.
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